Abriu a porta da sala e entrou lentamente. Tateou o interruptor pela parede, acendeu a luz, soltou um suspiro fundo: finalmente estava em casa. Libertando-se da mochila pesada em cima da pequena mas confortável poltrona, ligou o som e movimentou a cabeça para os lados, alongando o pescoço como que seguisse os passos rigorosos de um ritual solene de alívio e relaxamento.
Ali era seu templo: seu por ser o templo do deus que quisesse seguir, seu porque ali ele poderia ser o deus daquele lugar, se assim o desejasse. Com D minúsculo, maiúsculo, que fosse. Ali estaria em paz, estaria a salvo, encontraria a si mesmo, a seu senhor e salvador. Poderia se prostrar de dor e chorar no meio da sala se necessário, derrubar os livros das prateleiras se sentisse raiva, assistir um filme engraçado e rir gostosamente se bem quisesse. Teria privacidade pra ser ele mesmo, pra sentir o que quisesse. Haveria barulho se assim ele ordenasse sua existência (e se não incomodasse os vizinhos, afinal os templos alheios também são sagrados), do contrário haveria silêncio.
Mas hoje ele não queria nada que soasse tão desesperador ou divino. Só queria a música, que já estava lá, nem alta nem baixa, apenas na altura perfeita para alcançar todos os cômodos de seu pequeno lar. Abria a geladeira e os armários da cozinha, ia e voltava, coletando ingredientes para o jantar. Faltava um ingrediente, mas não podia culpar ninguém além de si mesmo por ter acabado e não comprado, o que pode ser aliviador por não nutrir expectativas. Pensou em outra coisa pra jantar, riu de si mesmo ao lembrar que não faz sentido brigar consigo por tão pouca coisa, guardou a culpa pra transformar em ação no dia seguinte, no supermercado, e a vida seguia em frente. Simples, como deveria ser.
Desligou o som, ligou a TV e assistiu algo enquanto comia, com os pés em cima da mesa de centro. Tomou seus remédios após o jantar, amanhã é preciso providenciar mais, e voltou para a TV, onde ficou por algum tempo, na santa paz de Deus. Cansou da TV, escovou os dentes e foi para a cama ler alguma coisa, porque ler é encontrar o deus interior e escrever é exorcizar os demônios, sempre pensava isso, e leu por muito tempo.
Lá pelas tantas o sono veio, arrebatador, invadindo seu templo com sua permissão e chegando bem-vindo. Sem muita resistência, porque até a sabedoria divina sabe a hora de recuar, deixou-se tomar pela sonolência, pensou que a vida era boa, agradeceu a Deus por ceder-lhe um pouco de Sua substância para que fosse deus daquele templo e dormiu o sono dos que vivem em paz.