Eu sou um programador.
Programar já foi um hobby quando eu era adolescente e é o que eu faço para pagar as contas. Uns dias eu me sinto mais programador que outros, e frequentemente me pego em reflexões sobre como o trabalho define ou não quem eu sou.
Meu primeiro estágio como programador foi em 2006. De lá pra cá já trabalhei de todo jeito. Às vezes com a lendária figura do chefe chegando e dizendo o que eu tinha fazer no dia, às vezes planejando tudo com um gerente de projetos com meses de antecedência.
Vários nomes e siglas entraram e saíram nesses processos de lá pra cá, desde processos herdados da engenharia, porque alguém pensou um dia que fazer software é igual a fazer prédio, até processos que nasceram pensados pra software. As pessoas começaram a falar mais em agile, lean e MVP: fazer produtos enxutos, lançar logo, aprender com os erros, ciclos curtos de feedback para validar ideias. Mas antes que você desista desse texto, esse não é um texto sobre programação.
Eu tenho vários hobbies, uns mais frequentes que outros. O principal, de 2013 pra cá, é a fotografia.
Eu poderia divagar bastante e com muito prazer sobre minha história com a fotografia desde muito antes disso, mas eu marco 2013 na agenda mental porque foi quando fiz um curso que mudou minha relação com a fotografia — a paquera virou um relacionamento estável — e me fez afundar mais no tema. A história completa fica pra outro texto, quem sabe?
Agora em 2019 eu comecei a fotografar com filme, como nossos ancestrais faziam. Todos esses anos uma ou outra pessoa perguntava se eu tinha vontade de usar filme, mas fui resistente. Há uns meses minha namorada me emprestou uma pequena câmera de filme, brinquei um pouco, depois tropecei por acidente numa ótima câmera muito barata numa loja de artigos usados quando fui doar umas roupas. Quando reparei, estava pesquisando rolos de filme, comparando as cores entre eles, esperando a próxima revelação.
Eu confesso um crime: na fotografia digital, quando faço uma foto de que gosto, eu gosto de me dedicar à foto, passar pro computador, fazer uma pós-edição legal no Lightroom e publicar no Instagram e/ou no lendário Flickr.
O Instagram, especificamente, se tornou um péssimo terreno para um processo criativo. O Instagram nos mostra primeiro as pessoas que mais têm curtidas e interações, sejam as que seguimos, sejam as sugestões. Como o conteúdo que consumimos interfere no que criamos, no fim me parece que todo o Instagram está produzindo fotos parecidas.
A fotografia de filme tem me ajudado a quebrar esse ciclo. Eu levo semanas entre uma foto e sua revelação. Além de me surpreender (ou me decepcionar) com fotos que fiz e esqueci, isso me permite que eu me concentre em outras partes do processo, como algo que às vezes passava despercebido: o próprio prazer de criar algo.
Eu estava falando da minha câmera de filme pra um amigo programador dia desses. Ele acabou me soltando um “mas o ciclo de feedback não é lento pra fotografia de filme?”
Eu tive uma epifania ali da motivação por aquele novo processo no meu hobby antigo, como se eu tivesse achado a explicação para um prazer que eu sentia sem saber o motivo. Nós estamos sempre correndo atrás de números e resultados, tentando ser produtivos o tempo inteiro. Fazer mais, chegar antes, ter mais. No meio dessa ansiedade toda, o ciclo lento de feedback não é um problema, é uma vantagem.
Puta merda, fotografar é meu hobby. Eu não tenho que ser produtivo. Eu não tenho que ser o mais criativo. Eu não tenho que gerar resultados incríveis e revolucionar a fotografia. O importante é que eu me divirta criando, ainda que eu não goste do resultado, por mais esquisito que isso possa parecer.
Por uma fração de tempo, eu tive o prazer de criar algo. Talvez venha um borrão depois da revelação, talvez eu tenha deixado o dedo na frente da lente, mas ei, eu me diverti. E pode ser que dê bom, pode ser que as cores do filme ou a ótica da lente vão deixar o resultado melhor do que planejei. Levo tempo pra ver a foto pronta entre apertar o botão e finalmente ver a foto, e essa curiosidade, essa “ansiedade criativa” que mora entre tantas ansiedades ruins que a existência já nos dá, é um frio na barriga bom de se sentir.
Num mundo que exige velocidade e sacrifícios e que quer nos moer para extrair algarismos e gráficos, fazer uma tarefa pelo próprio prazer da tarefa me soa quase como uma forma de resistência.
Não tenho planos de abandonar de vez a fotografia digital pela analógica. Ainda é uma zona de conforto e tem dias que sim, que eu quero fotografar e ver o que eu fiz. Assim como a pizza gourmet artesanal do restaurante em meia luz e a pizza do delivery da esquina, tudo tem seu dia e não sou obrigado a escolher um tipo favorito. Mais uma vez, eu não tenho por que me obrigar a escolher esse ou outro estilo.
Nem sempre temos liberdade sobre nossas escolhas, então poder ter esse momento de respiração e alívio em nosso tempo livre (ele deveria ser, afinal, livre), criar algo em uma velocidade que seja de nosso gosto, num ritmo em que nossos pensamentos possam fluir à vontade, é uma terapia.
:stand-up claps:
O mesmo comigo com o meu hobby de panificação. Um pão que pode demorar até 3 dias de preparo. Quantas vezes não escutei: "melhor ir logo na padaria"
É aquela coisa… o que não segue o nosso modus operandi imediatista tem um gostinho diferente. Que merda de comentário esse que tu ouviu. Imagino a tua cara. ?